08/01/14

Cerro os olhos para ouvir durante toda a noite,
e todo o mês, e recomeçando no interior
da minha vida - o sangue.
Amarga e difusa loucura do sangue
cercado pelo mundo - eu tudo sei.
Humildade e esgotamento e, quando
a boca estremece, tarefa e depois solidão.
Sei como se pensa obscuramente.
Vejo que a luz se encurva nos campos de urtigas,
e a mão se encurva na luz.
A mão que retém a faca e desliza
sobre a mesa ao encontro do pão maduro.
Porque eu amo a fome.

E eis que todo esse puro tempo passado
se levante, enquanto respiro debaixo da luz.
Com a dor dentro, levanta-se; com
um forte delírio e a luz imensa - e eu sei.
Ouçam: é neste país onde cheiro
um ramo de sal, a terra pútrida.
Amo a penumbra de uma cara, a brancura
parada de um sorriso no meio da água
profundamente esquecida - sei
tudo, tudo.
Que nada existe e as coisas nascem no tocar
de minha mão inundada.
E é preciso esperar enquanto se morre,
e fica o campo sob o céu que se queima
preciosamente.
Tenho agora a idade - e sei tudo.
Digo: a minha alegria é tenebrosa.

E eu desejaria levantar-me levemente
sobre as paisagens que se enchem de chuva
apaixonada.
Desejaria estar em cima, no meio da alegria,
e abrir os dedos tão devagar que ninguém sentisse
a melancolia da minha inocência.
Tanto desejaria ser destruído
por um lento milagre interior.

Cegar com o rosto contra um ramo abrupto
de relâmpagos.
Eu sei. Quero dizer: eu amo
essa morte no meio da luz, entre crisálidas e gotas,
à noite, de dia -
quando o mês se extingue num supremo amadurecimento.

Herberto Helder
2001
Ou o poema contínuo 
Assírio & Alvim



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