15/09/14
Os navios
Da Imaginação até ao Papel. É uma difícil passagem, é um
perigoso mar. A distância parece curta à primeira vista, e embora seja assim
quão longa viagem é, e quão prejudicial por vezes para os navios que a
empreendem.
O primeiro prejuízo provém da natureza assaz frágil das
mercadorias que os navios transportam. Nos mercados da Imaginação a maior parte
das coisas e as melhores são fabricadas de vidros finos e de cerâmicas
transparentes, e com todo o cuidado do mundo muitas se partem no caminho, e
muitas se partem quando as desembarcam para terra. E todo o prejuízo deste
género é sem remédio, porque é impensável que o navio volte atrás para recolher
coisas da mesma forma. Não há hipótese de encontrar a mesma loja que as vendia.
Os mercados da Imaginação têm lojas grandes e luxuosas mas não de duração
longa. As suas transacções são curtas, arrematam as suas mercadorias
rapidamente e liquidam de seguida. É muito raro para um navio voltar e
encontrar os mesmos exportadores com os mesmos géneros.
Um outro prejuízo provém da capacidade dos navios. Partem
dos portos dos continentes prósperos sobrecarregados, e depois quando se
encontrarem no alto mar vêem-se obrigados a deitar fora parte da carga para
salvar o todo. De tal modo que quase nenhum navio consegue levar completos
tantos tesouros quantos recolheu. As coisas despejadas são obviamente os
géneros de menor valia, mas por vezes acontece que os marinheiros, na sua
grande pressa, cometem erros e deitam ao mar objectos preciosos.
Mal chegam ao porto branco do papel e são precisos outros
sacrifícios de novo. Vêm os oficiais da alfândega e examinam um género e pensam
se devem permitir o desembarque; recusam deixar que se descarregue um outro
género; e de certas tralhas apenas aceitam pequena quantidade. O lugar tem as suas
leis. Nem todas as mercadorias têm a entrada livre e é estritamente proibido o
contrabando. A importação de vinhos é impedida porque os continentes de que vêm
os navios fazem vinhos e álcoois de uvas que crescem e amadurecem a temperatura
mais generosa. Os oficiais da alfândega não querem para nada estas bebidas. São
demasiado embriagadoras. Não são propícias para quaisquer cabeças. Para além
disso existe uma companhia no lugar que tem o monopólio dos vinhos. Fabrica
líquidos que têm a cor do vinho e o sabor da água, e deles se pode beber o dia
inteiro sem que subam à cabeça. É uma velha companhia. Goza de grande
reputação, e as suas acções estão sempre sobrevalorizadas.
Devemos, porém, ficar satisfeitos quando os navios entram no
porto mesmo que seja com todos estes sacrifícios. Porque ao fim de contas com
vigia e com muito cuidado limita-se o número dos recipientes partidos e
atirados ao mar durante a viagem. Também, as leis do lugar e as normas
alfandegárias são tirânicas em grande medida mas não de todo proibitivas, e
grande parte da carga desembarca-se. Nem os oficiais da alfândega são
infalíveis, e alguns dos géneros impedidos passam dentro de caixas fraudulentas
em que se escreve uma coisa por fora e por dentro se tem outra, e importam-se
alguns bons vinhos para banquetes excelentes.
Triste, triste é outra coisa. É quando passam alguns navios
enormes, com joalharias de coral e mastros de ébano, com grandes bandeiras
desfraldadas brancas e vermelhas, cheios de tesouros, que nem sequer se
aproximam do porto quer por todos os géneros que levam serem proibidos, quer
por o porto não ter bastante profundidade para os acolher. E seguem o seu
caminho. Vão de vento em popa sobre as suas velas de seda, o sol fulgura na sua
figura de proa em ouro, e afastam-se tranquila e majestosamente, afastam-se
para sempre de nós e do nosso porto constrito.
Felizmente são muito raros estes navios. Apenas vemos dois,
três durante a nossa vida inteira. E rapidamente os esquecemos. E depois de
passarem alguns anos se algum dia — quando estamos inertes olhando a luz e
ouvindo o silêncio — por acaso voltarem aos nossos ouvidos mentais algumas
estrofes entusiásticas, de início não as reconhecemos e atormentamos a nossa
memória para recordar onde as tínhamos ouvido antes. Dificilmente acorda a
antiga memória e recordamos que estas estrofes são do cântico que salmodiavam
os marinheiros, belos como heróis da Ilíada, quando passavam os grandes, os
excelsos navios e avançavam indo — quem sabe para onde.
Konstandinos Kavafis
Poemas e prosas
Relógio D'Água (1994)
Konstandinos Kavafis
Poemas e prosas
Relógio D'Água (1994)
14/09/14
12/09/14
09/09/14
Tortura e obra-prima
Fomos à cinemateca. Sob o efeito. Iniciava-se um ciclo sobre o cinema Russo. Nasdróvia, pensámos. Chegamos. Uma inundação de gente de gala, fatos e vestidos, a respectiva pompa e circunstância. Eu e o Vasco os maltrapilhos do costume. Atacámos o vinho branco com alguma astúcia. Não deu para muito, o espectáculo começava. Entrámos. Sala cheia. Os únicos que ali estavam por acaso. Antes do baile havia cerimónia (de abertura): o embaixador Russo, a directora da Cinemateca e uma tradutora. O Russo discursa. Em Russo. Esboçamos o sorriso. Controlado. Vem a tradutora num português arranhado pelo sotaque Russo. Não! O riso aperta. Difícil disfarçar. Já não olho para o Vasco. Baixamos a cabeça. Aguenta. Respira fundo. Depois, a directora. É gaga. Não dá. Primeira gargalhada sonora ecoa pela sala. Sentimos os olhares embaraçados. A tradutora passa para Russo. Estamos neste momento em posições dignas de kamasutra. Eu choro, o vasco chora. Não conseguimos respirar. O processo recomeça. O Vasco não controla e ri-se tão alto que eu penso que temos que sair da sala. Os oradores hesitam. Olhos colados no chão, agachados e agarrados à barriga. Um sofrimento imenso. Saímos ou não? Aguentamos. Em convulsões na cadeira. Se ao menos tivéssemos ido para o fundo da sala...
Uma eternidade depois a conferência acaba. Um martírio. Estou prestes a desfalecer. Sem oxigénio no cérebro. Não trocamos um olhar há cerca de quinze minutos.
A luz apaga-se.
Finalmente suspiramos. O corpo já dorido.
A luz apaga-se.
Finalmente suspiramos. O corpo já dorido.
O filme começa.
Depois da tortura a obra-prima.
Quem diria.
Quem diria.
02/09/14
O paradoxo do sofá
Existem dois tipos de pessoa: as que colocam capa no sofá e as que mantém a sua forma original.
É paradoxal.
O sofá obriga a uma escolha: Longevidade ou usufruto.
O sofá obriga a uma escolha: Longevidade ou usufruto.
Uns asseguram a durabilidade, sem a deterioração natural do tempo, enquanto outros abdicam dessas qualidades em prol da forma original.
Poder-se-ia ainda mencionar um terceiro espécime que usa capas mas que as retira em ocasiões especiais; mas como só há espaço para dois tipos de pessoa no mundo não vou entrar no domínio da especulação.
Eu faço parte do segundo grupo. Mas por vezes olho para o meu sofá sujo e arranhado pelos gatos e lá me lembro do outro hemisfério.
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