16/08/14

conta corrente

1-Fevereiro (sábado). Fiz cinquenta e três anos há dias. Como é óbvio, não acredito. Mas enfim, é a opinião do Registo Civil. Acabou-se, fiz cinquenta e três. É aliás uma idade inverosímil, a minha, desde os cinquenta. A "vergonha" da idade (que não tenho) deve vir daí. E então lembrei-me: e se eu tentasse uma vez mais o registo diário do que me foi afectando? Admiro os que o conseguiram, desde a juventude. Nunca fui capaz. Creio que por pudor, digamos, falta de coragem. Um romance é um biombo: a gente despe-se por detrás. Isto não. Mesmo que não falemos de nós (é-me difícil falar de mim). Aliás como os outros, desconheço-me. Talvez, também porque me evito. A verdade é que, quando me encontro bem pela frente, reconheço-me intragável. Mas enfim as virtudes são também desgostantes. De resto, sou pouco abonado. Segundo a Regina, as virtudes que tenho têm mesmo raízes viciosas: tolerância por fraqueza, interesse pela arte, por vaidade e coisas assim. Não digo que aconteça isso com todas as ditas virtudes; mas com algumas deve ser verdade. Chega. O meu "diário" está nas centenas de cartas aos meus amigos. Lembro as ao Lima de Freitas, L. Albuquerque, Costa Marques, Mário Sacramento, Eduardo Lourenço, alguns mais. Em todo o caso, essas mesmas, falsas. Excepto talvez quando sobre questões sérias. E ainda aí há quase sempre um disfarce ou o tempero do gracejo. Serei agora capaz? Tento. Seguro-me ao argumento de que me dá prazer ler os registos dos outros. Lêem-se sempre com curiosidade. Um motivo para insistir - satisfazer a curiosidade dos outros. Mas terei eu "outros"?

6-Fevereiro (quinta). Fui à Baixa. É-me quase uma aventura ir à Baixa. De qualquer modo, é um acontecimento - não sou da baixa, não sou mesmo da cidade, estou nela o mais possível dos arredores. Eu dizia, antes de vir para Lisboa, que traria a província comigo e me instalaria nela. (O Namora concordou com o meu dito a propósito do Aquilino.) Ilusão. Da província trouxe só o meu modo de estar na província, sem província para estar. O resultado é pouco cómodo. Sem convívio, chega-se a perder vocabulário. George de Sand, a propósito dos frades de Vale de Mosa, em Maiorca, dizia que a solidão estupidifica. Pois. A útil e verdadeira solidão é ser-se eu com. Não ser-se eu. Fui à Baixa. Conversei com Serafim Ferreira. Serafim Ferreira resiste-me dos amigos que me vão largando. Incapacidade minha de os segurar? Vivo aquém do ser natural e só aí eu sou natural e aproveitável. É aí que faço livros. Para além, na zona de convívio, um desastre. O que se passa onde faço os livros não é convivente. E raro, afinal, o quero convivente. A verdade de um artista não é quotidiana e o artista tem de sê-lo. Daí os desencontros. Trazer para o lado de cá o que é do outro lado, não. Não. Do lado de cá aprendi as regras do jogo. O Serafim. Firme. Por enquanto. Em epistolografia, aguento-me. É ainda o prolongamento daquilo onde funciono. De um a um, foram-se indo todos. Diz-me o Serafim que mesmo o Nelson de Matos. Óptimo. Concentrei-me em obstinação desde cedo - contra quase a vida toda que sempre me foi contra. Perfeitamente. Continuemos. Culpado eu - atenção. Exclusivamente. Creio-o a sério. Quase todos os que contactam comigo sofrem uma decepção. E decepcionado eu sempre com a decepção deles. Nada a fazer.

Virgílio Ferreira
conta corrente
Livraria Bertrand (1980)

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