21/10/14

conta-corrente (2)


6 de Junho de 1969

Ainda o Diário do Sacramento. Como é que o coeur mis à nu pode ser uma sedução? se puséssemos por escrito tudo o que nos passa por dentro, seríamos monstruosos. Sou absolutamente incapaz de me "confessar" seja a quem for, nem sequer a mim próprio. Há dias, em conversa com o Ramos Rosa (estava a Regina) falou-se de psicanálise. Insurgi-me contra essa baixeza de um indivíduo pôr tudo ao léu. Regina disse. "Tens medo." Mas não é verdade. Se me não ponho nu na rua, não é por medo. Se não alivio em público os gases intestinais, não é por medo. É um problema de decência, de respeito por nós, de equilíbrio, de autodomínio. Aliviar, pela confissão, o que nos pesa, é que é fraqueza. Aguento enquanto posso. Com dificuldade, às vezes. Mas vou aguentando. Há instantes em que um pequeno toque, um breve impulso mais nos dissolve na loucura. Conheço esses instantes. E então penso: "Vais enlouquecer." Até hoje, tenho ficado do lado de cá. Costumo dizer: do pescoço para baixo tenho tudo em saldo. Do pescoço para cima, tudo funciona bem. Isto o disse, aliás, ao D., que em certa entrevista admitiu que os problemas de "angústia" eram para o psiquiatra. É que ele já esteve internado... Quase todos os que me acusam, aliás, passam a vida a caminho do psiquiatra com as suas obsessõezinhas debaixo do braço. Possivelmente a arte tem sido para mim a grande catarse destas coisas. Antes de escrever Manhã Submersa sonhava muito com o seminário, com o desejo e impossibilidade de sair dele. Nunca mais sonhei. 

É boa. Sou contra a confissão e confessei-me. 


Virgílio Ferreira
conta corrente
Livraria Bertrand (1980)

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